sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Com a palavra, a Drª Vandana Shiva!


Entrevista com uma das mais importantes figuras na defesa da biodiversidade e no combate as injustiças sociais. Uma verdadeira guerreira que dedica sua vida enfrentando os gigantes corporativos, contra a imposição neoliberal de economias colonizadoras e excludentes sobre países pobres e fragilizados.




Do lado dos últimos. Entrevista com Vandana Shiva

Publicado em janeiro 23, 2009 por HC

Os “pobres”, defende Vandana Shiva, não são aqueles que “ficaram para trás”, por serem incapazes de jogar as regras do capitalismo, mas aqueles que ficaram excluídos de todo jogo e aos quais foi impedido o acesso aos próprios recursos de um sistema econômico que destrói o controle público sobre o patrimônio biológico e cultural. Estar “do lado dos últimos” (como diz o título de um recente livro seu publicado pelas edições Slow Food) não significa, portanto, dar mais a quem tem menos, mas restituir o que foi subtraído com a força de leis injustas, defender os bens comuns do assalto avançado da globalização neoliberal, impedir a exclusividade das formas de vida e de conhecimento e construir uma nova democracia ecológica. Uma democracia que defenda a biodiversidade e que reconheça o condicionamento recíproco entre sustentabilidade ecológica e justiça social.
Pedimos a Vandana Shiva, que há décadas continua a reivindicar o direito de todo ser humano de se opor e resistir – no sentido gandhiano – às leis que desautorizam seus direitos, que respondesse algumas perguntas sobre a sua prática de cientista e ativista.
A reportagem é de Giuliano Battiston, publicada no jornal Il Manifesto, 06-01-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma das questões que a senhora tende a destacar com mais insistência é a íntima conexão entre sustentabilidade ecológica e justiça social. Como explicaria essa conexão àqueles que continuam considerando que se trata de âmbitos totalmente separados e impermeáveis entre eles?
Para a maior parte dos pobres, a conexão é evidente, porque os recursos naturais e ecológicos constituem a fonte principal do seu sustento, e, quando alguém se apropria indevidamente deles, isso leva, por um lado, à insustentabilidade ecológica e, por outro, à injustiça social e econômica. Deixe-me dar dois exemplos: se a Coca-Colaextrai diariamente, com as suas instalações, milhões de litros de água com a qual uma certa comunidade muitas vezes se beneficia, ela, fazendo isso, destrói o sistema hídrico dessa comunidade e, ao mesmo tempo, causa uma nova forma de injustiça social e econômica. Ou tomemos a questão da terra: em Bengala, recentemente, o grupo Tata procurou apropriar-se da terra dos agricultores, mas a submissão aos objetivos da indústria automobilística de uma terra que oferece sustento à milhares de pessoas não só retira a fertilidade dessa terra e cria uma produtividade insustentável do ponto de vista ecológico, mas determina também uma grave injustiça social. E é justamente contra essa injustiça que os agricultores de Bengalacombateram organizando-se, impedindo que a Tata construísse sobre as suas terras. São apenas dois entre numerosos exemplos que demonstram, entre outras coisas, como a sustentabilidade ecológica e a justiça social estão conectadas à paz, porque é justamente da injustiça social e do crescimento da desigualdade que o fundamentalismo tem origem.
Segundo as análises que a senhora desenvolve em “Bene comune della terra” [Bem comum da terra, em tradução livre], “a globalização econômica se configura como uma nova forma de ‘enclosure of the commons’, o cerco das terras comuns britânicas”, e se volta à privatização de cada aspecto da nossa vida, da água que bebemos à biodiversidade, do sistema educativo ao patrimônio cultural. Pode nos explicar de que modo a globalização está ligada ao cerco dos bens comuns da Inglaterra do século XVI e quais são as suas atuais manifestações?
Na Inglaterra, com os cercos dos bens comuns, apropriou-se das terras dos agricultores transformando-as em terrenos para a produção de matérias-primas destinadas ao enriquecimento da burguesia emergente e ao funcionamento da indústria têxtil. Nas últimas décadas, por meio das leis de propriedade intelectual promovidas pela WTO [Organização Mundial do Comércio] e graças às condições financeiras impostas pelo Banco Mundial com os planos de ajuste estrutural e os processos de privatização, foram incluídos nos cercos de propriedade bens de novo tipo. Aqueles aos quais voltei particularmente a minha atenção são os recursos vivos: os sistemas vivos graças aos quais o planeta se mantém vivo e que são indispensáveis para satisfazer as nossas necessidades fundamentais foram declarados propriedade intelectual, como se fossem uma criação das corporações: hoje é a própria vida como bem que é privatizada. Além disso, do momento em que os sistemas vivos são acompanhados de tipos particulares de saberes e conhecimentos, e que, portanto, sistemas específicos de conhecimento são associados a formas específicas de vida, começa-se a cercar também o saber e os bens intelectuais. Já é evidente que estamos frente a um assalto desferido contra a atmosfera assim como contra o ar que respiramos: as grandes indústrias antes cercam o ar poluindo-o e tratando-o como um objeto já morto e de sua propriedade, e depois, uma vez que a poluição alcança um nível de caos climático, pensam em torná-lo matéria de troca comercial. A possibilidade de comprar e vender cotas de emissão de poluição demonstra que todos os atores envolvidos nas discussões relativas aos protocolos de mudanças climáticas creem verdadeiramente que podem exercer direitos de propriedade sobre a atmosfera. Aquela realizada por um grupo de indústrias poluidoras é só a última e clamorosa forma de cerco dos bens comuns.
A senhora sempre foi muito crítica com relação ao reducionismo da ciência mecanicista, filha da revolução científica. Poderia nos explicar por que defende que o reducionismo não é “simplesmente um incidente epistemológico, mas a resposta às necessidades de um tipo específico de organização econômica e política” e por que acredita que a ciência moderna constitui “uma justificação ética e gnoseológica à exploração dos recursos” comuns?
São muitos os modos pelos quais a emergência da ciência mecanicista – e da filosofia reducionista que está em sua base – acabam por se integrar ao crescimento da organização econômica que definimos capitalismo, promovendo suas regras de funcionamento e favorecendo seus interesses. Sobretudo, a orientação reducionista consente que todos os limites éticos sejam removidos da utilização da natureza. No período em que essa ideologia se formava, os cientistas defendiam que as culturas fundadas sobre uma visão holística da natureza e da relação entre a natureza e o homem obstaculizavam a exploração. Por isso, foi necessário um ataque à ideia dos seres humanos como parte da natureza e a da natureza como organismo vivo: a natureza foi morta, e a terra mater, convertida em terra nullius, uma terra vazia, privada de capacidade produtiva e criativa, um mero amálgama de matérias-primas. Além disso, o reducionismo e a filosofia mecanicista permitem externalizar os danos da exploração: o reducionismo, antes, faz com que a vida possa ser explorada e destruída e depois, cortando e seccionando a realidade, faz sim com que se possa fechar os olhos frente às consequências das nossas ações. Esse mecanismo é adotado também em outros campos: os sistemas vivos são sistemas complexos, altamente diferenciados, que se auto-organizam, mas a engenharia genética considera as plantas como um mero conjunto de átomos chamados genes, que podem ser seccionados, cortados e substituídos, como peças de umLego, sem consequências. Ora, se os agricultores indianos morrem por causa dos produtos da engenharia genética, o reducionismo permitirá negar que as causas devem ser atribuídas à tecnologia em si, atribuindo-as a outros fatores. O reducionismo, além disso, opera como uma verdadeira ideologia, porque se apresenta como a única ciência digna desse nome, sujeitando a si todos os outros sistemas de conhecimento (que são a mesma coisa, senão mais complexos), ou negando que se trate de ciência verdadeira.
A degradação da natureza, a passagem forçada da terra mater a terra nullius foi conduzido também por meio do processo que, em “Sopravvivere allo sviluppo”[Sobreviver ao desenvolvimento, em tradução livre], a senhora ilustrou introduzindo o termo de “mau-desenvolvimento”, como qual indica “um modo de conhecimento masculino”, “um modelo de desenvolvimento patriarcal”. Pode nos explicar de que modo “o ‘mau-desenvolvimento’ confina as mulheres à passividade”?
Adotei o termo “mau-desenvolvimento” para indicar um desenvolvimento disforme, um mau-funcionamento do sistema, e para traçar seus vínculos com uma abordagem patriarcal, que combina a dominação sobre as mulheres à do capital sobre a natureza e sobre os indivíduos. O “mau-desenvolvimento” confina as mulheres na passividade, sobretudo, tratando a sua consciência como se ela não existisse. Nos últimos 35 anos, trabalhei com muitíssimas mulheres e sempre estou mais convencida de que são elas as “verdadeiras especialistas”, as únicas capazes de conhecer o funcionamento de um sistema e os modos para protegê-lo, e que o mundo é, em grande parte, “produzido” pelas mulheres. Porém, o sistema de pensamento reducionista e a organização econômica capitalista excluíram ou subestimaram as contribuições das mulheres, induzindo-as a acreditar que o trabalho, fundamental, de “manter a vida” não é um verdadeiro trabalho, porque não é produtivo. Segundo esse sistema de pensamento, de fato, uma mulher que mantém a própria família não produz nada, e uma comunidade que satisfaz todas as próprias necessidades alimentares mas não vende ou não compra alimentos não produz comida e não contribui com o “crescimento” e com o “desenvolvimento”. A adoção desse critério de medida levou ao “mau-desenvolvimento” e, com isso, à destruição da natureza, à exploração do “capital natural” e, junto com a negação das necessidades fundamentais, ao crescimento da pobreza.
Segundo a sua análise, devemos abandonar a atual economia suicida e promove uma abordagem cultural que expresse “um enraizamento profundo na terra e nas especificidades do lugar em que se origine, mas também um sentimento de solidariedade por todo o gênero humano, uma consciência universal”. Alguém poderia observar que, na prática, trata-se de objetivos opostos, porque o amparo da especificidade contradiz o chamado à solidariedade universal. Como responderia a essa objeção?
Responderia que é muito simples, diria inevitável, conciliar as duas dimensões: todos nós habitamos um único planeta, e isso significa que a “terra” é a mesma, mas ao mesmo tempo cada um provém de um lugar particular, de um “terreno” específico. É uma herança da filosofia reducionista a ideia de que se façam oposições do tipo “isso ou aquilo”. Quanto a mim, minha formação na teoria quântica, que exclui a ideia de que existam elementos incompatíveis e reciprocamente alternativos em favor de uma concepção baseada na conjugação “e”, me leva a crer que se pode dispor de uma identidade profundamente local, enraizada no vale doHimalaia, onde nasci e cresci, e ao mesmo tempo completamente planetária, e que essas duas formas de identidade sejam mantidas juntas sem contradições. Os recentes atentados terroristas de Mumbai também são fruto da erosão das formas de identidade múltiplas às quais me refiro. Aqueles que são vulneráveis e “disponíveis” a ser alistados, pagos ou explorados pelos extremistas do momento para cumprir ações de terrorismo são aqueles que foram afastados à força da sua terra, que foram considerados supérfluos e “excedentes” com relação às próprias sociedades; ou aqueles que foram mobilizados e recrutados por meio da construção fictícia de identidades que se excluem umas às outras em base à oposição “ou isto ou aquilo”. Na realidade, nunca ocorre “ou isto ou aquilo”, mas sempre um “isto e aquilo”: só conseguiremos nos desvincular da herança das identidades incompatíveis cultivando a nossa responsabilidade com relação ao lugar particular de onde proviemos e junto com a consciências de que somos parte de uma humanidade comum, que compartilha o mesmo planeta.
Perfil de Vandana Shiva
Nascida em Dehra Dun, nas montanhas do Himalaia, em 1952, formada em teoria quântica, em 1982 fundou a Research Foundation for Science, Technology and Natural Resource Policy e, em 1991, deu vida ao movimento Navdanya (Novas sementes), que protege a biodiversidade. Premiada em 1993 com o Right Livelihood AwardShiva é autora de muitos livros. Entre eles, “Monoculturas da mente” (Global Editora, 2003), “Vacche sacre e mucche pazze” [Vacas sagradas e vacas loucas, em tradução livre] (DeriveApprodi 2001), “Il mondo sotto brevetto” [O mundo sob patente] (Feltrinelli 2002), “Terra madre” (Utet 2002), “Guerras por água” (Radical Livros, 2006). Os últimos livros publicados são “Dalla parte degli ultimi” [Do lado dos últimos] (Slow Food) e “India spezzata” [Índia despedaçada] (Il Saggiatore), em que lembra que o milagre econômico da “shining Índia” se refere a “5% do país” e “está construído sobre a exclusão e a exploração de 95% da Índia”.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O que significa o PIB? Produto interno bruto? A soma de a soma de todas a riquezas referentes aos bens e serviços produzidos em uma determinada região? Quem partilha dessa "riqueza"? O texto a seguir escrito por Ladislau Dowbor esclarece que ao contrário do que é veiculado pela mídia manipuladora e tendenciosa, o cálculo do PIB não leva em consideração uma série de fatores relevantes ao verdadeiro desenvolvimento país. Pelo contrário: contabiliza os prejuízos como incrementadores do crescimento econômico. Com muita erudição, Ladislau Dowbor nos alerta para novas perspectivas que poderão transformar o PIB em valores que refletem fielmente o contexto social do país.


O debate sobre o PIB: estamos fazendo a conta errrada

Ladislau Dowbor
26 de setembro de 2009

Crescer por crescer, é a filosofia da célula cancerosa.
Banner colocado por estudantes, na entrada de
 uma conferência sobre ecconomia


PIB, como todos devem saber, é o produto interno bruto. Para o comum dos mortais que não fazem contas macroeconômicas, trata-se da diferença entre aparecerem novas oportunidades de emprego (PIB em alta) ou ameaças de desemprego (PIB em baixa). Para o governo, é a diferença entre ganhar uma eleição e perdê-la. Para os jornalistas, é uma ótima oportunidade para darem a impressão de entenderem do que se trata. Para os que se preocupam com a destruição do meio-ambiente, é uma causa de desespero. Para o economista que assina o presente artigo, é uma oportunidade para desancar o que é uma contabilidade clamorosamente deformada.

Peguemos o exemplo de uma alternativa contábil, chamada FIB. Trata-se  simplesmente um jogo de siglas, Felicidade Interna Bruta. Tem gente que prefere felicidade interna líquida, questão de gosto. O essencial é que inúmeras pessoas no mundo, e técnicos de primeira linha nacional e internacional, estão  cansados de ver o comportamento econômico ser calculado sem levar em conta – ou muito parcialmente – os interesses da população e a sustentabilidade ambiental. Como pode-se dizer que a economia vai bem, ainda que o povo va mal? Então a economia serve para quê?

No Brasil a discussão entrou com força recentemente, em particular a partir do cálculo do IDH (Indicadores de Desenvolvimento Humano), que inclui, além do PIB,  a avaliação da expectativa de vida (saúde) e do nível da educação. Mais recentemente, foram lançados dois livros básicos, Reconsiderar a riqueza, de Patrick Viveret, e Os novos indicadores de riqueza de Jean-Gadrey e Jany-Catrice. Há inúmeras outras iniciativas em curso, que envolvem desde o Indicadores de Qualidade do Desenvolvimento do IPEA, até os sistemas integrados de indicadores de qualidade de vida nas cidades na linha do Nossa São Paulo. O movimento FIB é mais uma contribuição para a mudança em curso. O essencial para nós, é o fato que estamos refazendo as nossas contas.

As limitações do PIB aparecem facilmente através de exemplos. Um paradoxo levantado por Viveret, por exemplo, é que quando o navio petroleiro Exxon Valdez naufragou nas costas do Alaska, foi necessário contratar inúmeras empresas para limpar as costas, o que elevou fortemente o PIB da região. Como pode a destruição ambiental aumentar o PIB? Simplesmente porque o PIB calcula o volume de atividades econômicas, e não se são úteis ou nocivas. O PIB mede o fluxo dos meios, não o atingimento dos fins. Na metodologia atual, a poluição aparece como sendo  ótima para a economia, e o IBAMA vai aparecer como o vilão que a impede de avançar. As pessoas que jogam pneus e fogões velhos no rio Tieté, obrigando o Estado a contratar empresas para o desassoreamento da calha, contribuem para a produtividade do país. Isto é conta?

Mais importante ainda, é o fato do PIB não levar em conta a redução dos estoques de bens naturais do planeta. Quando um país explora o seu petróleo, isto é apresentado como eficiência econômica, pois aumenta o PIB. A expressão “produtores de petróleo” é interessante, pois nunca ninguém conseguiu produzir petróleo: é um estoque de bens naturais, e a sua extração, se der lugar a atividades importantes para a humanidade, é positiva, mas sempre devemos levar em conta que estamos reduzindo o estoque de bens naturais que entregaremos aos nossos filhos. A partir de 2003, por exemplo, não na conta do PIB mas na conta da poupança nacional, o Banco Mundial já não coloca a extração de petróleo como aumento da riqueza de um país, e sim como a sua descapitalização. Isto é elementar, e se uma empresa ou um governo apresentasse a sua contabilidade no fim de ano sem levar em conta a variação de estoques, veria as suas contas rejeitadas. Não levar em conta o consumo de bens não renováveis que estamos dilapidando deforma radicalmente a organização das nossas prioridades. Em termos técnicos, é uma contabilidade grosseiramente errada.

A diferença entre os meios e os fins na contabilidade aprece claramente nas opções de saúde. A Pastoral da Criança, por exemplo, desenvolve um amplo programa de saúde preventiva, atingindo milhões de crianças até 6 anos de idade através de uma rede de cerca de 450 mil voluntárias. São responsáveis, nas regiões onde trabalham, por 50% da redução da mortalidade infantil, e 80% da redução das hospitalizações. Com isto, menos crianças ficam doentes, o que significa que se consome menos medicamentos, que se usa menos serviços hospitalares, e que as famílias vivem mais felizes. Mas o resultado do ponto de vista das contas econômicas é completamente diferente: ao cair o consumo de medicamentos, o uso de ambulâncias, de hospitais e de horas de médicos, reduz-se também o PIB. Mas o objetivo é aumentar o PIB ou melhorar a saúde (e obem-estar) das famílias?

Todos sabemos que a saúde preventiva é muito mais produtiva, em termos de custo-benefício, do que a saúde curativa-hospitalar. Mas se nos colocarmos do ponto de vista de uma empresa com fins lucrativos, que vive de vender medicamentos ou de cobrar diárias nos hospitais, é natural que prevaleça a visão do aumento do PIB, e do aumento do lucro. É a diferença entre os serviços de saúde e a indústria da doença. Na visão privatista, a falta de doentes significa falta de clientes. Nenhuma empresa dos gigantes chamados internacionalmente de “big pharma” investe seriamente em vacinas, e muito menos em vacinas de doenças de pobres. Ver este ângulo do problema é importante, pois nos faz perceber que a discussão não é inocente, e os que clamam pelo progresso identificado com o aumento do PIB querem, na realidade, maior dispêndio de meios, e não melhores resultados. Pois o PIB não mede resultados, mede o fluxo dos meios.

É igualmente importante levar em consideração que o trabalho das 450 mil voluntárias da Pastoral da Criança não é contabilizado como contribuição para o PIB. Para o senso comum, isto parece uma atividade que não é propriamente econômica, como se fosse um bandaid social. Os gestores da Pastoral, no entanto, já aprenderam a corrigir a contabilidade oficial. Contabilizam a redução do gasto com medicamentos, que se traduz em dinheiro economizado na família, e que é liberado para outros gastos. Nesta contabilidade corrigida, o não-gasto aparece como aumento da renda familiar. As noites bem dormidas quando as crianças estão bem representam qualidade de vida, coisa muitíssimo positiva, e que é afinal o objetivo de todos os nossos esforços. O fato da mãe ou do pai não perderem dias de trabalho pela doença dos filhos também ajuda a economia. O Canadá, centrado na saúde pública e preventiva, gasta 3 mil dólares por pessoa em saúde, e está em primeiro lugar no mundo neste plano. Os Estados Unidos, com saúde curativa e dominantemente privada, gastam 6,5 mil, e estão longe atrás em termos de resultados. Mas ostentam orgulhosamente os 16% do PIB gastos em saúde, para mostrar quanto esforço fazem. Estamos medindo meios, esquecendo os resultados. Neste plano, quanto mais ineficientes os meios, maior o PIB.

Uma outra forma de aumentar o PIB é reduzir o acesso a bens gratuitos. Na Riviera de São Lourenço, perto de Santos, as pessoas não têm mais livre acesso à praia, a não ser através de uma séria de enfrentamentos constrangedores. O condomínio contribui muito para o PIB, pois as pessoas têm de gastar bastante para ter acesso ao que antes acessavam gratuitamente. Quando as praias são gratuitas, não aumentam o PIB. Hoje os painéis publicitários nos “oferecem” as maravilhosas praias e ondas da região, como se as tivessem produzido. A busca de se restringir a mobilidade, o espaço livre de passeio, o lazer gratuito oferecido pela natureza, gera o que hoje chamamos de “economia do pedágio”, de empresas que aumentam o PIB ao restringir o acesso aos bens. Temos uma vida mais pobre, e um PIB maior.

Este ponto é particularmente grave no caso do acesso ao conhecimento. Trata-se de uma área onde há excelentes estudos recentes, como A Era do Acesso, de Jeremy Rifkin; The Future of Ideas, de Lawrence Lessig; O imaterial, de André Gorz, ou ainda Wikinomics,  de Don Tapscott. Um grupo de pesquisadores da USP Leste, com Pablo Ortellado e outros professores, estudou o acesso dos estudantes aos livros acadêmicos: o vslume de livros exigidos é proibitivo para o bolso dos estudantes (80% de famílias de até 5 salários mínimos), 30% dos títulos recomendados estão esgotados. Na era do conhecimento, as nossas universidades de linha de frente trabalham com xerox de capítulos isolados do conjunto da obra, autênticos ovnis científicos, quando o MIT, principal centro de pesquisas dos Estados Unidos, disponibiliza os cursos na íntegra gratuitamente online, no quadro do OpenCourseWare (OCW). Hoje, os copyrights incidem sobre as obras até 90 anos após a morte do autor. E se fala naturalmente em “direitos do autor”, quanto se trata na realidade de direitos das editoras, dos intermediários.

É impressionante investirmos por um lado imensos recursos públicos e privados na educação, e por outro lado empresas tentarem restringir o acesso aos textos. O objetivo, é assegurar lucro das editoras, aumentando o PIB, ou termos melhores  resultados na formação, facilitando, e incentivando (em vez de cobrar) o aprendizado? Trata-se, aqui também, da economia do pedágio, de impedir a gratuidade que as novas tecnologias permitem (acesso online), a pretexto de proteger a remuneração dos produtores de conhecimento.[1] 
Outra deformação deste tipo de conta é a não contabilização do tempo das pessoas. No nosso ensaio Democracia Econômica, inserimos um capítulo “Economia do Tempo”. Está disponível online, e gratuitamente. O essencial, é que o tempo é por excelência o nosso recurso não renovável. Quando uma empresa nos obriga a esperarmos na fila, faz um cálculo: a fila é custo do cliente, não se pode abusar demais. Mas o funcionário é custo da empresa, e portanto vale a pena abusar um pouco. Isto se chama externalização de custos. Imaginemos que o valor do tempo livre da população econômicamente ativa seja fixado em 5 reais. Ainda que a produção de automóveis represente um aumento do PIB, as horas perdidas no trânsito pelo encalacramento do trânsito poderiam ser contabilizadas, para os 5 milhões de pessoas que se deslocam diariamente para o trabalho em São Paulo, em 25 milhões de reais, isto calculando modestos 60 minutos por dia. A partir desta conta, passamos a olhar de outra forma a viabilidade econômica da construção de metrô e de outras infraestruturas de transporte coletivo. E são perdas que permitem equilibrar as opções pelo transporte individual: produzir carros realmente aumenta o PIB, mas é uma opção que só é válida enquanto apenas minorias têm acesso ao automóvel. Hoje São Paulo anda em primeira e segunda, gastando com o carro, com a gazolina, com o seguro, com as doenças respiratórias, com o tempo perdido. Os quatro primeiros itens aumentam o PIB. O último, o tempo perdido, não é contabilizado. Aumenta o PIB, reduz-se a mobilidade. Mas o carro afinal era para quê?

Alternativas? Sem dúvida, e estão surgindo rapidamente. Não haverá o simples abandono do PIB, e sim a compreensão de que mede apenas um aspecto, muito limitado, que é o fluxo de uso de meios produtivos. Mede, de certa forma, a velocidade da máquina. Não mede para onde vamos, só nos diz que estamos indo depressa, ou devagar. Não responde aos problemas essenciais que queremos acompanhar: estamos produzindo o quê, com que custos, com que prejuizos (ou vantagens) ambientais, e para quem? Aumentarmos a velocidade sem saber para onde vamos não faz sentido. Contas incompletas são contas erradas.

A pedido do governo francés, foi organizada em 2009 uma comissão composta por Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi, na linha da medida do progresso econômico e social. Ainda que não apresentando uma proposta fechada, o relatório acabou traçando os pontos de referência da nova contabilidade nacional que surge. De forma geral, a visão consiste em resgatar as dimensões das contas nacionais que melhor representam os interesses da sociedade: “Já é tempo de deslocar o nosso sistema de medição das medidas da produção econômica para a medida do bem estar das pessoas. E as medidas do bem estar deverão ser colocadas no contexto da sustentabilidade”.[2]  Portanto, do foco de medição da produção passamos para o foco no resultado final, a qualidade de vida, mas sustentável em termos das futuras gerações. O social e o ambiental tornam-se o eixo organizador da informação.

Relativamente ao Pib, no relatório Stiglitz, a cifra central seria a renda nacional disponível líquida (net national disposable income), o que desagregado para a perspectiva domiciliar permite avaliar melhor o impacto econômico para a sociedade. Há um deslocamento em termos do peso relativo dos setores produtivos, com maior atenção para as áreas hoje muito mais centrais e difíceis de mensurar, como saúde, cultura e educação. O ponto maior de atenção passa a ser a renda domiciliar, o que permite dar melhor visibilidade às condições de vida das famílias. A questão chave da desigualdade entra para o primeiro plano, com uma contabilidade que reflita efetivamente a distribuição. A contas deverão incluir as atividades não monetárias. A inclusão dos custos ambientais vem através de uma imagem expressiva: no “contador” atual, medimos a velocidade da economia. Mas num carro, não basta medir a velocidade para medir a performance, precisamos incluir o medidor de combustível, gritantemente ausente nas nossas contas.  

Há diversas apreciações do relatório Stiglitz, mas trata-se sem dúvida de um avanço para um referencial que já tem pés e cabeça, contrariamente às deficiências gritantes do PIB. O mais provável é que este movimento de mudança das contas nacionais irá incorporar um conjunto de aportes dos mais variados setores e das mais variadas metodologias. Para quem queira acompanhar, há os trabalhos mencionados acima, em particular a boa visão de conjunto que oferece o estudo de Jean Gadrey, editado em português (Senac). E pode ser utilizado um estudo meu sobre o tema, intitulado Informação para a Cidadania e o Desenvolvimento Sustentável, disponível no meu site http://dowbor.org Temos de ser realistas: não haverá cidadania sem uma informação adequada, e adequadamente distribuida.

Fechamos esta nota técnica com uma citação excepcionalmente eloquente de Robert Kennedy, de 1968 ainda, quando o PIB americano era ainda de 800 bilhões (hoje é da ordem de 14 trilhões).

“Durante um tempo demasiadamente longo, parece que reduzimos a nossa excelência pessoal e os valores da comunidade à mera acumulação de coisas materiais. O nosso Produto Interno Bruto, agora, já supera os US$800 bilhões por ano, mas este PIB, – se julgarmos os Estados Unidos da América por este critério –  este PIB contabiliza a poluição do ar e a publicidade de cigarros, e as ambulâncias para limpar a carnificina nas nossas autoestradas. Soma as fechaduras especiais para as nossas portas e as prisões para as pessoas que as rompem. Soma a destruição florestal e a perda da nossa maravilha natural na expansão caótica urbana...E os programas de televisão que glorificam a violência para vender brinquedos para as nossas crianças. No entanto, o produto nacional bruto não conta a saúde das nossas crianças, a qualidade da sua educação ou a alegria das suas brincadeiras. Não inclui a beleza da nossa poesia ou a solidez dos nossos casamentos, a inteligência do nosso debate público ou a integridade dos nossos funcionários públicos. Não mede nem o nosso humor nem a nossa coragem, nem nossa sabedoria nem a nossa aprendizagem, nem a nossa compaixão nem a nossa devoção ao nosso país. Resumindo, mede tudo, exceto aquilo que faz a vida valer a pena”.[3]


De 1968 para cá, o PIB americanos subiu muito, e todas as pesquisas de satisfação de vida indicam uma queda progressiva. Afinal, de que se trata? De aumentar o PIB ou de viver melhor? E qual dos dois objetivos deve ser medido? O PIB, tão indecentemente exibido na mídia, e nas doutas previsões dos consultores, merece ser colocado no seu papel de ator coadjuvante. O objetivo é vivermos melhor. A economia é apenas um meio. É o nosso avanço para uma vida melhor que deve ser medido.

Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de “Democracia Econômica”, “A Reprodução Social: propostas para uma gestão descentralizada”, “O Mosaico Partido: a economia além das equações”, “Tecnologias do Conhecimento: os Desafios da Educação”, todos pela editora Vozes, além de “O que Acontece com o Trabalho?” (Ed. Senac) e co-organizador da coletânea  Economia Social no Brasil“ (ed. Senac) Seus  numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social, inclusive o artigo Informação para a Cidadania mencionado acima, estão disponíveis no http://www.dowbor.org/ – Contato ladislau@dowbor.org    




[1] O material do MIT pode ser acessado no site www.ocw.mit.edu; Em vez de tentar impadir a aplicação de novas tecnologias, como aliás é o caso das empresss de celular que lutam contra o wi-fi urbano e a comunicação quase gratuita via skype, as empresas devem pensar em se reconverter, e prestar serviços úteis ao mercado. A IBM ganhava dinheiro vendendo computadores, e quando este mercado se democratizou com o barateamento dos computadores pessoais migrou para a venda de softwares. Estes hoje devem se tornar gratuitos (a própria IBM optou pelo Linux), e a empresa passou a se viabilizar prestando serviços de apoio informático. Travar o acesso aumenta o PIB, mas empobrece a sociedade.
[2] The time is ripe for our measurement system to shift emphasis from measuring economic production to measuring people’s well being. And the mesasures of well-being should be put in a context of sustainability””. J. Stiglitz et al., Report by the Commission on the measurement of Economic Performance and Social Progress,  September 2009, p. 12 - http://www.stiglitz-sen-fitoussi.fr

[3] www.jfklibrary.org/Historical+Resources/Archives/Reference+Desk/
Speeches/RFK/RFKSpeech68Mar18UKansas.htm )