O debate sobre o PIB: estamos fazendo a conta errrada
Ladislau Dowbor
26 de setembro de 2009
Crescer por crescer, é a filosofia da célula cancerosa.
Banner colocado por estudantes, na entrada de
uma conferência sobre ecconomia
PIB, como todos devem saber, é o
produto interno bruto. Para o comum dos mortais que não fazem contas
macroeconômicas, trata-se da diferença entre aparecerem novas oportunidades de
emprego (PIB em alta) ou ameaças de desemprego (PIB em baixa). Para o governo,
é a diferença entre ganhar uma eleição e perdê-la. Para os jornalistas, é uma
ótima oportunidade para darem a impressão de entenderem do que se trata. Para
os que se preocupam com a destruição do meio-ambiente, é uma causa de
desespero. Para o economista que assina o presente artigo, é uma oportunidade
para desancar o que é uma contabilidade clamorosamente deformada.
Peguemos o exemplo de uma
alternativa contábil, chamada FIB. Trata-se
simplesmente um jogo de siglas, Felicidade Interna Bruta. Tem gente que
prefere felicidade interna líquida, questão de gosto. O essencial é que
inúmeras pessoas no mundo, e técnicos de primeira linha nacional e
internacional, estão cansados de ver o
comportamento econômico ser calculado sem levar em conta – ou muito
parcialmente – os interesses da população e a sustentabilidade ambiental. Como
pode-se dizer que a economia vai bem, ainda que o povo va mal? Então a economia
serve para quê?
No Brasil a discussão entrou com
força recentemente, em particular a partir do cálculo do IDH (Indicadores de
Desenvolvimento Humano), que inclui, além do PIB, a avaliação da expectativa de vida (saúde) e
do nível da educação. Mais recentemente, foram lançados dois livros básicos,
Reconsiderar a riqueza, de Patrick Viveret, e Os novos indicadores de riqueza
de Jean-Gadrey e Jany-Catrice. Há inúmeras outras iniciativas em curso, que
envolvem desde o Indicadores de Qualidade do Desenvolvimento do IPEA, até os
sistemas integrados de indicadores de qualidade de vida nas cidades na linha do
Nossa São Paulo. O movimento FIB é mais uma contribuição para a mudança em curso. O essencial para
nós, é o fato que estamos refazendo as nossas contas.
As limitações do PIB aparecem
facilmente através de exemplos. Um paradoxo levantado por Viveret, por exemplo,
é que quando o navio petroleiro Exxon Valdez naufragou nas costas do Alaska,
foi necessário contratar inúmeras empresas para limpar as costas, o que elevou
fortemente o PIB da região. Como pode a destruição ambiental aumentar o PIB?
Simplesmente porque o PIB calcula o volume de atividades econômicas, e não se
são úteis ou nocivas. O PIB mede o fluxo dos meios, não o atingimento dos fins.
Na metodologia atual, a poluição aparece como sendo ótima para a economia, e o IBAMA vai aparecer
como o vilão que a impede de avançar. As pessoas que jogam pneus e fogões
velhos no rio Tieté, obrigando o Estado a contratar empresas para o
desassoreamento da calha, contribuem para a produtividade do país. Isto é
conta?
Mais importante ainda, é o fato
do PIB não levar em conta a redução dos estoques de bens naturais do planeta.
Quando um país explora o seu petróleo, isto é apresentado como eficiência
econômica, pois aumenta o PIB. A expressão “produtores de petróleo” é
interessante, pois nunca ninguém conseguiu produzir petróleo: é um estoque de
bens naturais, e a sua extração, se der lugar a atividades importantes para a
humanidade, é positiva, mas sempre devemos levar em conta que estamos reduzindo
o estoque de bens naturais que entregaremos aos nossos filhos. A partir de
2003, por exemplo, não na conta do PIB mas na conta da poupança nacional, o
Banco Mundial já não coloca a extração de petróleo como aumento da riqueza de
um país, e sim como a sua descapitalização. Isto é elementar, e se uma empresa
ou um governo apresentasse a sua contabilidade no fim de ano sem levar em conta
a variação de estoques, veria as suas contas rejeitadas. Não levar em conta o
consumo de bens não renováveis que estamos dilapidando deforma radicalmente a
organização das nossas prioridades. Em termos técnicos, é uma contabilidade
grosseiramente errada.
A diferença entre os meios e os
fins na contabilidade aprece claramente nas opções de saúde. A Pastoral da
Criança, por exemplo, desenvolve um amplo programa de saúde preventiva,
atingindo milhões de crianças até 6 anos de idade através de uma rede de cerca
de 450 mil voluntárias. São responsáveis, nas regiões onde trabalham, por 50%
da redução da mortalidade infantil, e 80% da redução das hospitalizações. Com
isto, menos crianças ficam doentes, o que significa que se consome menos
medicamentos, que se usa menos serviços hospitalares, e que as famílias vivem
mais felizes. Mas o resultado do ponto de vista das contas econômicas é
completamente diferente: ao cair o consumo de medicamentos, o uso de
ambulâncias, de hospitais e de horas de médicos, reduz-se também o PIB. Mas o
objetivo é aumentar o PIB ou melhorar a saúde (e obem-estar) das famílias?
Todos sabemos que a saúde
preventiva é muito mais produtiva, em termos de custo-benefício, do que a saúde
curativa-hospitalar. Mas se nos colocarmos do ponto de vista de uma empresa com
fins lucrativos, que vive de vender medicamentos ou de cobrar diárias nos
hospitais, é natural que prevaleça a visão do aumento do PIB, e do aumento do
lucro. É a diferença entre os serviços de saúde e a indústria da doença. Na
visão privatista, a falta de doentes significa falta de clientes. Nenhuma
empresa dos gigantes chamados internacionalmente de “big pharma” investe
seriamente em vacinas, e muito menos em vacinas de doenças de pobres. Ver este
ângulo do problema é importante, pois nos faz perceber que a discussão não é
inocente, e os que clamam pelo progresso identificado com o aumento do PIB
querem, na realidade, maior dispêndio de meios, e não melhores resultados. Pois
o PIB não mede resultados, mede o fluxo dos meios.
É igualmente importante levar em
consideração que o trabalho das 450 mil voluntárias da Pastoral da Criança não
é contabilizado como contribuição para o PIB. Para o senso comum, isto parece
uma atividade que não é propriamente econômica, como se fosse um bandaid
social. Os gestores da Pastoral, no entanto, já aprenderam a corrigir a
contabilidade oficial. Contabilizam a redução do gasto com medicamentos, que se
traduz em dinheiro economizado na família, e que é liberado para outros gastos.
Nesta contabilidade corrigida, o não-gasto aparece como aumento da renda
familiar. As noites bem dormidas quando as crianças estão bem representam
qualidade de vida, coisa muitíssimo positiva, e que é afinal o objetivo de
todos os nossos esforços. O fato da mãe ou do pai não perderem dias de trabalho
pela doença dos filhos também ajuda a economia. O Canadá, centrado na saúde
pública e preventiva, gasta 3 mil dólares por pessoa em saúde, e está em
primeiro lugar no mundo neste plano. Os Estados Unidos, com saúde curativa e
dominantemente privada, gastam 6,5 mil, e estão longe atrás em termos de
resultados. Mas ostentam orgulhosamente os 16% do PIB gastos em saúde, para
mostrar quanto esforço fazem. Estamos medindo meios, esquecendo os resultados.
Neste plano, quanto mais ineficientes os meios, maior o PIB.
Uma outra forma de aumentar o PIB
é reduzir o acesso a bens gratuitos. Na Riviera de São Lourenço, perto de
Santos, as pessoas não têm mais livre acesso à praia, a não ser através de uma
séria de enfrentamentos constrangedores. O condomínio contribui muito para o
PIB, pois as pessoas têm de gastar bastante para ter acesso ao que antes
acessavam gratuitamente. Quando as praias são gratuitas, não aumentam o PIB.
Hoje os painéis publicitários nos “oferecem” as maravilhosas praias e ondas da
região, como se as tivessem produzido. A busca de se restringir a mobilidade, o
espaço livre de passeio, o lazer gratuito oferecido pela natureza, gera o que
hoje chamamos de “economia do pedágio”, de empresas que aumentam o PIB ao
restringir o acesso aos bens. Temos uma vida mais pobre, e um PIB maior.
Este ponto é particularmente
grave no caso do acesso ao conhecimento. Trata-se de uma área onde há
excelentes estudos recentes, como A Era do Acesso, de Jeremy Rifkin; The Future
of Ideas, de Lawrence Lessig; O imaterial, de André Gorz, ou ainda
Wikinomics, de Don Tapscott. Um grupo de
pesquisadores da USP Leste, com Pablo Ortellado e outros professores, estudou o
acesso dos estudantes aos livros acadêmicos: o vslume de livros exigidos é
proibitivo para o bolso dos estudantes (80% de famílias de até 5 salários
mínimos), 30% dos títulos recomendados estão esgotados. Na era do conhecimento,
as nossas universidades de linha de frente trabalham com xerox de capítulos
isolados do conjunto da obra, autênticos ovnis científicos, quando o MIT,
principal centro de pesquisas dos Estados Unidos, disponibiliza os cursos na
íntegra gratuitamente online, no quadro do OpenCourseWare (OCW). Hoje, os
copyrights incidem sobre as obras até 90 anos após a morte do autor. E se fala
naturalmente em “direitos do autor”, quanto se trata na realidade de direitos
das editoras, dos intermediários.
É impressionante investirmos por
um lado imensos recursos públicos e privados na educação, e por outro lado
empresas tentarem restringir o acesso aos textos. O objetivo, é assegurar lucro
das editoras, aumentando o PIB, ou termos melhores resultados na formação, facilitando, e
incentivando (em vez de cobrar) o aprendizado? Trata-se, aqui também, da
economia do pedágio, de impedir a gratuidade que as novas tecnologias permitem
(acesso online), a pretexto de proteger a remuneração dos produtores de
conhecimento.[1]
Outra deformação deste tipo de
conta é a não contabilização do tempo das pessoas. No nosso ensaio Democracia
Econômica, inserimos um capítulo “Economia do Tempo”. Está disponível online, e
gratuitamente. O essencial, é que o tempo é por excelência o nosso recurso não
renovável. Quando uma empresa nos obriga a esperarmos na fila, faz um cálculo:
a fila é custo do cliente, não se pode abusar demais. Mas o funcionário é custo
da empresa, e portanto vale a pena abusar um pouco. Isto se chama
externalização de custos. Imaginemos que o valor do tempo livre da população
econômicamente ativa seja fixado em 5 reais. Ainda que a produção de automóveis
represente um aumento do PIB, as horas perdidas no trânsito pelo encalacramento
do trânsito poderiam ser contabilizadas, para os 5 milhões de pessoas que se
deslocam diariamente para o trabalho em São Paulo , em 25 milhões de reais, isto
calculando modestos 60 minutos por dia. A partir desta conta, passamos a olhar
de outra forma a viabilidade econômica da construção de metrô e de outras
infraestruturas de transporte coletivo. E são perdas que permitem equilibrar as
opções pelo transporte individual: produzir carros realmente aumenta o PIB, mas
é uma opção que só é válida enquanto apenas minorias têm acesso ao automóvel.
Hoje São Paulo anda em primeira e segunda, gastando com o carro, com a gazolina,
com o seguro, com as doenças respiratórias, com o tempo perdido. Os quatro
primeiros itens aumentam o PIB. O último, o tempo perdido, não é contabilizado.
Aumenta o PIB, reduz-se a mobilidade. Mas o carro afinal era para quê?
Alternativas? Sem dúvida, e estão
surgindo rapidamente. Não haverá o simples abandono do PIB, e sim a compreensão
de que mede apenas um aspecto, muito limitado, que é o fluxo de uso de meios
produtivos. Mede, de certa forma, a velocidade da máquina. Não mede para onde
vamos, só nos diz que estamos indo depressa, ou devagar. Não responde aos
problemas essenciais que queremos acompanhar: estamos produzindo o quê, com que
custos, com que prejuizos (ou vantagens) ambientais, e para quem? Aumentarmos a
velocidade sem saber para onde vamos não faz sentido. Contas incompletas são
contas erradas.
A pedido do governo francés, foi
organizada em 2009 uma comissão composta por Joseph Stiglitz, Amartya Sen e
Jean-Paul Fitoussi, na linha da medida do progresso econômico e social. Ainda
que não apresentando uma proposta fechada, o relatório acabou traçando os
pontos de referência da nova contabilidade nacional que surge. De forma geral,
a visão consiste em resgatar as dimensões das contas nacionais que melhor
representam os interesses da sociedade: “Já é tempo de deslocar o nosso sistema
de medição das medidas da produção econômica para a medida do bem estar das
pessoas. E as medidas do bem estar deverão ser colocadas no contexto da
sustentabilidade”.[2] Portanto, do foco de medição da produção
passamos para o foco no resultado final, a qualidade de vida, mas sustentável
em termos das futuras gerações. O social e o ambiental tornam-se o eixo
organizador da informação.
Relativamente ao Pib, no
relatório Stiglitz, a cifra central seria a renda nacional disponível líquida (net national disposable income), o que
desagregado para a perspectiva domiciliar permite avaliar melhor o impacto
econômico para a sociedade. Há um deslocamento em termos do peso relativo dos
setores produtivos, com maior atenção para as áreas hoje muito mais centrais e
difíceis de mensurar, como saúde, cultura e educação. O ponto maior de atenção
passa a ser a renda domiciliar, o que permite dar melhor visibilidade às
condições de vida das famílias. A questão chave da desigualdade entra para o
primeiro plano, com uma contabilidade que reflita efetivamente a distribuição.
A contas deverão incluir as atividades não monetárias. A inclusão dos custos
ambientais vem através de uma imagem expressiva: no “contador” atual, medimos a
velocidade da economia. Mas num carro, não basta medir a velocidade para medir
a performance, precisamos incluir o medidor de combustível, gritantemente
ausente nas nossas contas.
Há diversas apreciações do
relatório Stiglitz, mas trata-se sem dúvida de um avanço para um referencial
que já tem pés e cabeça, contrariamente às deficiências gritantes do PIB. O
mais provável é que este movimento de mudança das contas nacionais irá
incorporar um conjunto de aportes dos mais variados setores e das mais variadas
metodologias. Para quem queira acompanhar, há os trabalhos mencionados acima,
em particular a boa visão de conjunto que oferece o estudo de Jean Gadrey,
editado em português (Senac). E pode ser utilizado um estudo meu sobre o tema,
intitulado Informação para a Cidadania e o Desenvolvimento Sustentável,
disponível no meu site http://dowbor.org Temos
de ser realistas: não haverá cidadania sem uma informação adequada, e
adequadamente distribuida.
Fechamos esta nota técnica com
uma citação excepcionalmente eloquente de Robert Kennedy, de 1968 ainda, quando
o PIB americano era ainda de 800 bilhões (hoje é da ordem de 14 trilhões).
“Durante um tempo demasiadamente
longo, parece que reduzimos a nossa excelência pessoal e os valores da
comunidade à mera acumulação de coisas materiais. O nosso Produto Interno
Bruto, agora, já supera os US$800 bilhões por ano, mas este PIB, – se julgarmos
os Estados Unidos da América por este critério – este PIB contabiliza a poluição do ar e a
publicidade de cigarros, e as ambulâncias para limpar a carnificina nas nossas
autoestradas. Soma as fechaduras especiais para as nossas portas e as prisões
para as pessoas que as rompem. Soma a destruição florestal e a perda da nossa
maravilha natural na expansão caótica urbana...E os programas de televisão que
glorificam a violência para vender brinquedos para as nossas crianças. No
entanto, o produto nacional bruto não conta a saúde das nossas crianças, a
qualidade da sua educação ou a alegria das suas brincadeiras. Não inclui a
beleza da nossa poesia ou a solidez dos nossos casamentos, a inteligência do
nosso debate público ou a integridade dos nossos funcionários públicos. Não
mede nem o nosso humor nem a nossa coragem, nem nossa sabedoria nem a nossa
aprendizagem, nem a nossa compaixão nem a nossa devoção ao nosso país.
Resumindo, mede tudo, exceto aquilo que faz a vida valer a pena”.[3]
De 1968 para cá, o PIB americanos
subiu muito, e todas as pesquisas de satisfação de vida indicam uma queda
progressiva. Afinal, de que se trata? De aumentar o PIB ou de viver melhor? E
qual dos dois objetivos deve ser medido? O PIB, tão indecentemente exibido na
mídia, e nas doutas previsões dos consultores, merece ser colocado no seu papel
de ator coadjuvante. O objetivo é vivermos melhor. A economia é apenas um meio.
É o nosso avanço para uma vida melhor que deve ser medido.
Ladislau
Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas
pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor
titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas.
É autor de “Democracia Econômica”, “A Reprodução Social: propostas para uma
gestão descentralizada”, “O Mosaico
Partido: a economia além das equações”,
“Tecnologias do Conhecimento: os Desafios
da Educação”, todos pela editora Vozes, além de “O que Acontece com o Trabalho?” (Ed. Senac) e co-organizador da
coletânea “Economia Social no Brasil“ (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento
econômico e social, inclusive o artigo Informação
para a Cidadania mencionado acima, estão disponíveis no http://www.dowbor.org/ – Contato ladislau@dowbor.org
[1] O
material do MIT pode ser acessado no site www.ocw.mit.edu;
Em vez de tentar impadir a aplicação de novas tecnologias, como aliás é o caso
das empresss de celular que lutam contra o wi-fi
urbano e a comunicação quase gratuita via skype, as empresas devem pensar em se reconverter, e prestar
serviços úteis ao mercado. A IBM ganhava dinheiro vendendo computadores, e
quando este mercado se democratizou com o barateamento dos computadores
pessoais migrou para a venda de softwares.
Estes hoje devem se tornar gratuitos (a própria IBM optou pelo Linux), e a
empresa passou a se viabilizar prestando serviços de apoio informático. Travar
o acesso aumenta o PIB, mas empobrece a sociedade.
[2] The time is ripe for our
measurement system to shift emphasis from measuring economic production to measuring
people’s well being. And the mesasures of well-being should be put in a context
of sustainability””. J. Stiglitz et al., Report
by the Commission on the measurement of Economic Performance and Social
Progress, September 2009, p. 12 - http://www.stiglitz-sen-fitoussi.fr
Speeches/RFK/RFKSpeech68Mar18UKansas.htm
)
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